A DEPRESSÃO E SUA ESPECIFICIDADE FRENTE AO LUTO E À MELANCOLIA
Propomos uma relação de heterogeneidade não apenas entre o luto e a melancolia – como aponta Freud -, mas também entre o luto e a depressão. O luto é justamente um movimento de elaboração psíquica da perda, não restando a este conceito outra apreensão que não seja a de afastamento da cronicidade depressiva. Portanto, não há luto na depressão. Não há, tampouco, um luto patológico que seria um desvio de norma do luto. É como se na depressão o luto existisse como referência a uma transcendência, que contivesse em si mesmo um conjunto de elementos tomados a priori – um juízo de valor sobre “certo e errado” – do qual a psicanálise tende a se afastar. Nesse contexto, é preciso conceber o luto como uma forma que o homem civilizado tem encontrado para lidar com a questão da finitude, do trauma, da perda e da morte.
O luto tem como função, de acordo com Freud, (re)inserir o sujeito no circuito desejante. É um trabalho de ligação e integração daquilo que solapa o sujeito e fica, momentaneamente, sem construção narrativa. Ele aparece como mola propulsora da simbolização e elaboração narrativa da perda, mediante reconstrução da dor psíquica. Em outras palavras, o luto tem por função matar o morto, dando a ele um lugar simbólico subjacente à elaboração, também simbólica, da perda.
O luto, como insígnia da elaboração psíquica da perda, constitui um doloroso caminho percorrido a fim de assimilar a transitoriedade da vida e metaforizar seu desejo. Por outro lado, além de proporcionar tal assimilação simbólica, o enlutado se protege de seu próprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirramento da dor psíquica – a lembrança do objeto perdido, o pranteamento, a inibição passageira etc. Essa evitação do desmoronamento narcísico é exatamente o que o melancólico, marcado pela precariedade de sua formação narcísica (cf. Lambotte, 1997), não consegue efetuar.
Na melancolia, como vimos, há um desmentido da perda, assim como da renúncia ao objeto. O melancólico não pode perder o objeto ao qual se rendia, visto que nele o sujeito encontrava sua única forma – ainda que extremamente frágil – de continuidade do próprio sentimento de existência. Nessa circunstância, o sujeito, identificado ao vazio deixado pelo outro, entra num conflito de forças que revela a precariedade narcísica e o risco de seu desmoronamento.
Esta faceta é inerente ao problema da melancolia relacionado à constituição do eu e do objeto. Como ficou frisado, a não-inscrição psíquica da perda objetal revela que o objeto sequer chegou a tomar uma circunscrição na subjetivação melancólica. Nessa condição, o sujeito se desfacela e é absorvido pelo objeto in toto. Não há, para o melancólico, registro simbólico da perda objetal pelo fato mesmo de que a deserção do Outro assinala, na constituição do sujeito, sua própria identificação ao nada.
Sobre essa questão, Freud ([1917] 1996) sublinha que, na melancolia, o que se perdeu foi o ego. Justamente porque esta perda diz respeito ao próprio movimento constitutivo da imagem ideal de si no narcisismo primário que fracassou. O ego perdido refere-se, na melancolia, à identificação ao nada. Nessa condição, o objeto não se constitui como perdido. Se, no surto melancólico, “o que se perdeu foi o ego”, é porque – Freud o diz – a sombra do objeto o consumiu, tomou seu lugar – que era, precisamente, uma referência no nada. O melancólico, como demonstramos, nunca desfrutou de uma imagem jubilosa de si. Nunca lançou-se ao enamoramento narcísico condicionado pelo discurso idealizado dos pais. A barreira para a enunciação mesma de um “eu” positivado, cuja narrativa construiria esta possibilidade, levanta-se, paradoxalmente, como tentativa nunca alcançada de construção do sentimento de si na melancolia.
Mostra-se relevante situar, no contexto da relação com a experiência narcísica, as diferenças entre o modelo melancólico stricto sensu e as depressões não-melancólicas, discutidas neste trabalho. Com efeito, o discurso da perda de si na depressão ganha contornos próprios que diferem da “perda do eu” na melancolia, conforme indicou Freud.
O deprimido, diferentemente do melancólico, protesta contra a perda. Não se permite lançar-se a novas possibilidades de investimento objetal. Há na depressão um registro psíquico da perda. O deprimido martiriza-se por ela e sabe o que ficou perdido. Por isso mesmo não há retorno do objeto sobre o eu, dado que o deprimido foi fisgado pelo investimento dos pais e pela formação da imagem de si. O deprimido tece uma narrativa sobre a perda, contudo não encontra sustentação para sua elaboração.
Nesse patamar, constata-se que a transitoriedade é tão insuportável para o deprimido quanto é impossível a realização da crença narcísica. Tal como o melancólico, mas por razões diferentes, o deprimido não faz o trabalho do luto. A função de separação e elaboração da perda não é colocada a termo, visto que a crença narcísica, objeto por excelência do sofrimento depressivo, opera seu efeito sintomático. E, com isso, deflagra a inoperância do sujeito frente à perda, à transitoriedade e à exigência de trabalho psíquico próprio do circuito desejante. O deprimido é, portanto, um nostálgico absoluto. Sua rendição ao narcisismo é de tal espécie que ele nega qualquer possibilidade outra que não seja aquela conflagrada pela crença narcísica.
Nas depressões agudas não-melancólicas, o discurso é de uma perda de si. Mas, ao contrário da melancolia, é o discurso sobre a perda de uma imagem perfeita subjugada pelo assombro de sua própria transitoriedade. Não se encontra a ambivalência, a clivagem do eu; tampouco o conflito que sinaliza a fragilidade do ego melancólico e a identificação com o objeto. Nessas depressões não-melancólicas, portanto, o sujeito pranteia o que foi, numa reinvindicação fixa de seu próprio modelo narcísico ideal.
Aqui, o sintoma diz respeito a uma aderência à crença narcísica perdida ou crença num absoluto, da qual o sujeito não consegue abrir mão. Subsumida a um anseio de indiferenciação eu / outro, a crença narcísica ésedução do mito maternal (eu-ideal), chave da satisfação sumária de todas as urgências infantis. Anseio que não pode ser realizado, mas pode ser forjado pela via do gozo depressivo. Nele, o sujeito encontra alguma forma de degustar a estase narcísica perdida, ainda que pelo sabor amargo da indiferença afetiva.
O deprimido em sua amargura faz referência à imagem ideal perdida (“eu já fui e hoje não sou mais”), como se, pela via da estagnação, o gozo da indiferença – e mesmo da onipotência – fosse recuperável ou mesmo possível. Portanto, na depressão, é como se o sujeito dissesse: “se não sou mais o que fui (em outras palavras, se não sou o todo da relação ego-ideal), não quero mais nada”. A queda ladeira abaixo é, contudo, vertiginosa. E se o sujeito não encontrou vias de elaboração da transitoriedade, numa narrativa capaz de relançá-lo a uma “reinvenção de si mesmo”, corre o grave risco da aceleração de sua própria morte7.
Dado que na depressão a referência acha-se concentrada no eu-ideal, o que vai especificar a subjetivação dos pacientes deprimidos é uma peculiaridade na passagem do eu ideal para o ideal do eu. Centralizado na crença narcísica, o deprimido é o próprio perdido de si mesmo. É um sujeito centrado na essência do eu, que somente a crença narcísica pode sustentar. Nessa perspectiva, o deprimido nega seu próprio descentramento por não aceitar o jugo da transitoriedade, da diferença e do desejo.
Com efeito, ante o fato de que o sujeito centraliza-se na imagem perdida, é a questão do ideal do eu (o qual sustenta a possibilidade de laço desejante e de movimentação objetal) que se acha comprometida. Esta circunstância se situa num nível em que a formação ego-ideal se firmou, mas fracassou em construir as vias de transformação, características da passagem do eu ideal para o ideal do eu.
Verifica-se, nesse âmbito, que o ideal do eu na depressão constitui-se numa precipitação do eu-ideal, a qual impede qualquer reconstrução da história subjetiva e, consequentemente, afastamento da crença. O que marca o sofrimento nessas depressões é a relação com um ideal do eu colado à imagem perdida de si mesmo. O ideal do eu se confunde com o eu ideal, fica colado a uma dimensão de passado que não faz link com o futuro.
Nesses termos, o que é colocado no lugar do ideal do eu não é a figura do Pai tal como Freud ([1923] 1996) descreve no drama edipiano. Preso e dependente de sua única referência aparente – a crença narcísica -, o sujeito coloca no lugar do ideal do eu o próprio eu ideal perdido. O sujeito, aqui, está inscrito minimamente numa triangulação objetal, mas eximido de uma referência assimétrica capaz de sustentar um ideal no qual poderia se apoiar e abrir mão de sua própria imagem narcísica. Ele se vê na condição peremptória de construir sozinho, e para si mesmo, seus próprios valores e seus próprios ideais.