O Rei Leão: o papel estruturante da identificação com o pai

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O Rei Leão: o papel estruturante da identificação com o pai
Por Paulo Soroka 
Sem sombra de dúvidas, o remake de “O Rei Leão” (Disney, 2019), escrito por Jeff Nathanson e dirigido  por Jon Favreau, é um live-action psicanalítico: tal qual os mitos, que versam sobre os mistérios do Ciclo da Vida e da Natureza, a trama remete ao inconsciente, conferindo universalidade aos conflitos vivenciados pelos personagens e retratados com impactante hiper-realismo.
Na cena inicial, o Rei Mufasa e Sarabi, sua esposa, apresentam o herdeiro Simba aos súditos que festejam o nascimento. O soberano Mufasa, amado e respeitado, é alvo da inveja de Scar, seu  inescrupuloso irmão que ambiciona o trono e o amor de Sarabi, por quem anteriormente se sentira preterido. Scar não poupará esforços para  atingir seus objetivos: para ele, o fim justifica os meios.
A inveja corrosiva se intensifica após o nascimento de Simba, sucessor natural do pai. Temos, assim, o complexo  fraterno posto em cena, revelando a inspiração claramente shakespeareana de “O Rei Leão”. Tal qual Hamlet, Simba – com maior hesitação que o personargem de Shakespeare – vingará a morte de seu pai, provocada por Scar, que ardilosamente a ele atribui a responsabilidade pelo ocorrido.
O conflito edípico de Simba é evidente: ele admira as capacidades de seu idealizado pai, a quem deseja mostrar sua suposta força e poder, como ocorre quando ensaia um rugido – o rugido infantil do jovem Simba contrasta com o estrondoso rugido de seu poderoso pai. Com o intuito de obter autonomia e independência (ainda que precocemente), incentivado pelo maldoso tio e desafiando o interdito estabelecido pelo pai, Simba ultrapassa os limites seguros do reino e ingressa no território ocupado pelas perigosas hienas que, buscando vantagens, estavam associadas ao propósito destrutivo de Scar.
A perda precoce do pai e o devastador sentimento de culpa levam Simba a acatar a sugestão do tio: ele deve fugir para escapar da suposta acusação por parte dos súditos enlutados pela perda do monarca. Entretanto, a acusação é interna: há um superego tirânico que atormenta o jovem Simba e é projetado no exterior.
Os novos amigos de Simba, os marginalizados Timão e Pumba, a ele transmitem sua filosofia de vida: “Hakuna matata e seus problemas você  deve esquecer…isto é viver!” Atormentado pelo sentimento de culpa, Simba acata o estilo de vida de seus amigos e “esquece” a lição que aprendera com o pai – a de que, no Ciclo da Vida, o passado, o presente e o futuro estão incontornavelmente conectados – e, em um movimento defensivo para tentar dirimir a dor da perda, passa a encarar a vida como uma mera sucessão de momentos, sob a égide da busca do prazer imediato.
Como consolidar a identificação com o pai, se o luto por sua perda não pode ser vivenciado e elaborado?
Como alcançar a identidade adulta se uma adolescência prolongada se ergue como recurso defensivo?

Desde os primórdios da psicanálise, Freud demonstrou que as representações são produções mentais que remetem a um objeto ausente tornando-o, internamente, mais uma vez presente. As representações de coisa são complexos associativos formados por registros sensoriais em que o elemento visual é o aspecto fundamental; nas representações de palavra, o principal fator organizador é o registro acústico.

Em “O Rei Leão”, o místico babuíno Rafik promete a Simba que o conduzirá até o pai. Esperançoso, o leão o acompanha através de um denso e escuro caminho – o doloroso caminho da elaboração do luto. Rafik indica a Simba que se aproxime da superfície de um lago e olhe. Desapontado, o jovem comenta que enxerga apenas a própria imagem refletida na água. “Ele vive em você. Olhe de novo. Olhe melhor”, insiste Rafik. Simba então enxerga a imagem do pai, superposta a sua própria imagem: temos aqui o elemento visual evocando a representação do pai ausente. E é a voz do pai que lhe diz: “Você se esqueceu de quem é e, assim, me esqueceu. Precisa assumir seu lugar no Ciclo da Vida. Lembre-se de quem você  é” – aqui, trata-se do elemento acústico que, associando-se ao registro visual, alavanca o reencontro simbólico com o pai.
Fortalecido mediante a identificação  com o pai e acompanhado por Nala, amiga de infância que virá a se tornar sua esposa, Simba volta à floresta e retoma o poder, libertando seus habitantes do jugo de Scar. São as hienas, frustradas com as falsas promessas de seu aliado, que se incumbem de dar um fim ao tirano.
“O Rei Leão” expressa magistralmente o papel estruturante do processo identificatório com o pai na consolidação da identidade adulta de Simba. Assim, dando seguimento ao Ciclo da Vida, na cena final – que remete à cena inicial do live-action – é Simba, agora Rei Leão, e sua esposa quem apresentam seu herdeiro aos exultantes súditos.
Nas palavras de Goethe, citado por Freud em sua obra “Totem e Tabu”: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”.